domingo, 17 de agosto de 2008

Sobre jornalismo cultural.

 

Organizando meus arquivos, catei este texto. Merecedor de uma releitura, esta será feita nos dias seguintes à publicação, a partir de conversas que espero poder conduzir com as pessoas (público e profissionais) do meu convívio. Embora em alguns aspectos o texto já deva ser reparado, muita coisa no nosso jornalismo cultural persiste na mesmíssima. Taí, então, uma contribuição minha para o debate.

 

Entrevista a Jamil Marques, então estudante de comunicação na Universidade da Bahia (2000).

 

Uma vez que atuamos em regiões tão distantes do Brasil e considerando que tu já deves ter uma percepção do jornalismo cultural praticado no Nordeste, tentarei refletir um pouquinho sobre as práticas da imprensa aqui do Sul, especialmente do eixo Curitiba – Joinville – Florianópolis, com que estou mais diretamente em contato. Assim, antecipo um item de tua primeira pergunta: o suplemento cultural que tomo como referência é o "Anexo" do Jornal A Notícia . O caderno é cambiante: oscila entre a sofisticação e a mediocridade, da mesma forma como o jornal. Já foi brilhante em alguns momentos. Recentemente, não estava bom. Agora, voltou às mãos de uma de suas primeiras editoras, a jornalista Néri Pedroso – presumo que o Anexo voltará aos seus bons tempos. (Podes acessar números atrasados de A Notícia no endereço acima.)

1 - O que você entende por Jornalismo Cultural e como você vê a situação desta especialidade de Jornalismo no Brasil? (Cite, por favor, um bom exemplo de Caderno de Cultura.)

Antes de tudo, jornalismo cultural é jornalismo: isto é, não é publicação técnica, científica ou especializada. É um âmbito do jornalismo que se caracteriza pelos conteúdos com que trabalha, ou seja, com os acontecimentos intelectuais (artísticos e científicos, principalmente) e com isto que se convencionou designar como "variedades" e que engloba também certos acontecimentos sociais, os movimentos, os debates, as tradições... a cultura, enfim.

Existe, todavia, uma tendência (principalmente da parte dos próprios intelectuais, dos artistas, dos cientistas) a esperar do jornalismo cultural uma abordagem de fundo, um tratamento mais especializado das matérias e, sobretudo, procedimentos adequados aos metiês com que lida.

Para mim, jornalismo cultural é, ao mesmo tempo, um espaço privilegiado onde pode florescer a crítica e onde o público pode entrar em contato com a produção intelectual, artística e científica de uma comunidade, um país ou do mundo. Como atividade jornalística, precisa ser bem realizado, pois me parece que o parâmetro da qualidade deve ser aplicável a qualquer das atividades jornalísticas e existem bons exemplos em todo o País de ótimos profissionais trabalhando na área de esportes, por exemplo, cujo texto é muitíssimo mais sofisticado e eficaz do que o de muito jornalista cultural por aí.

2 - Qual a sua opinião sobre a cobertura dos produtos da "indústria cultural" feita pelos jornais brasileiros? Há perda ou reforço de nossa identidade?

Não falarei da indústria de discos porque a barafunda é tão grande que me sinto incompetente para compreender suas políticas – por não atuar na área senão como consumidor – e irritado perante a desfaçatez com que o produto importado ganha os espaços em detrimento das (ainda minguadas) ofertas nacionais.

Falarei do cinema.

Nos jornais da região acima referida, a produção da grande indústria dos Estados Unidos acabou por tomar quase a totalidade das páginas dedicadas ao cinema. Os jornalistas funcionários do "Anexo" não são necessariamente pessoas alienadas em relação à filmografia de qualidade produzida no mundo inteiro e alguns deles têm a prática de ir a Florianópolis, Curitiba e São Paulo para manter-se informados. Nas conversas que com eles travamos nos bares e nos eventos, somos todos muito lúcidos em relação às coisas que acontecem no mundo. Nas edições que se seguem, dia após dia, porém, as coisas mudam de figura.

O problema é institucional: a empresa compra as matérias distribuídas pelos monopólios e, como o número de jornalistas é demasiadamente reduzido pra acompanhar tudo o que ocorre na região e no País, essas matérias acabam servindo pra encher os buracos nas edições do suplemento. Para cada matéria de filme brasileiro são publicadas páginas de texto e imagens a cores de filmes ianques. Sem critério outro além da média que seus autores sabem estabelecer com os espectadores, à revelia de qualquer ponto de vista estética, filosófica ou politicamente lúcido.

Obviamente, a perda de identidade é conseqüência inevitável, embora haja quem afirme ser inócua a influência do jornalismo cultural sobre o gosto do povo em relação aos produtos já "marketizados" pelo jornalismo comum. A verdade é que brasileiro não gosta de se ver na tela. Brasileiro detesta ouvir Português nos cinemas (tanto detesta que fica em massa denegrindo a qualidade sonora dos filmes brasileiros – que nem são tão ruins assim, temos coisas muito piores). Brasileiro goza nas calças quando vê bandeira americana tremulando num forte reconquistado.

Mas, isto não vale pra todo mundo: nos grandes e nos pequenos centros, o próprio público, à medida que se familiariza com os acontecimentos e as questões ligadas à produção artístico-cultural, torna-se mais exigente. Aos poucos, desde uns 10 anos para cá, vem se formando novamente uma espécie de massa crítica da qual surgem ocasionalmente alguns lúcidos cronistas que passam a integrar o jornalismo cultural. Começamos a ver isto por aqui.

3 - No Jornalismo Cultural, podemos observar a predominância em páginas e mais páginas, de alguns olimpianos, os "gurus" da intelectualidade, ou da arte. O Jornalismo Cultural, praticado desta forma, chega a se confundir com o colunismo social?

Como escritor e como teatrista enfrentei algumas vezes, sobretudo nos começos do meu trabalho, a falta de espaço nos meios de comunicação, ocupados que estavam por aqueles que, antes de mim, estavam trabalhando na área.

Depois, a situação mudou: passei eu próprio a ocupar certas "posições catedráticas" na imprensa local, de modo que, em se tratando de teatro, por exemplo, havia quase uma unanimidade em torno de meu nome na imprensa. Eu não

gostava disto, mas era assim que era.

Somente depois de três anos de quase clausura foi que consegui pôr-me na periferia das questões teatrais de Joinville (sobretudo porque os novos funcionários públicos não tinham um projeto cultural que me incluísse). Foi muito bom: plantei uma horta e aprendi a cultivar flores! : )

Enfim, embora devamos sonhar com um jornalismo cultural radicalmente democrático, na prática, no trabalho concreto de produzir diariamente colunas e colunas de assuntos culturais, é uma salvação quando aparecem sumidades que preencham uma, duas, três páginas de matéria relevante para um público certo ou de gosto apurado, que compre o jornal.

Eu próprio tenho (desde menino) uma predileção por textos de autoridades literárias, cinematográficas, musicais. Gosto dos artigos de fundo, das entrevistas realizadas por especialistas convidados etc.

Parece-me que a democracia radical está não em restringirmos o uso dos espaços tradicionais pelo olimpianos, mas – como éramos férteis nos anos 70! – em criar mídias alternativas, espaços novos de informação e de expressão.

Como internauta, percebo que existe hoje um jornalismo cultural totalmente construído à margem do jornalismo cultural oficial da "Folha" e do "Estadão", por exemplo. São os círculos (os "rings") criados na internet, as bases virtuais pessoais (como as minhas, uma abandonada; outra, inacabada!), as inumeráveis páginas de literatura, de cinema, de fotografia, de teatro, de filosofia, de história, de antropologia... de tudo o que se possa imaginar – páginas de peso, não meras brincadeiras acadêmicas ou amadoras –, que recebem colaborações de visitantes e que concentram vínculos para uma cadeia inesgotável de outras possibilidades.

E, então, estamos diante de duas alternativas: ou batalhamos para entrar no espaço restrito dos meios tradicionais em que se privilegiam aqueles que, merecidamente, eu penso, devem ser ouvidos por sua experiência e pela solidez de suas obras, ou mergulhamos com a cara e a coragem no mar de possibilidades que é a internet.

O bom jornalismo cultural é, então, aquele que, trafegando entre um e outro destes universos midiáticos, pode tecer conexões entre os acontecimentos relevantes e o público.

4 - O Jornalismo tradicional está se transformando num "publijornalismo", isto é, um Jornalismo para vender produtos? Sabemos de casos em que o jornalista ganha uma entrevista exclusiva com o cantor desde que dê a primeira capa do caderno para seu novo disco.

O jornalismo tradicional passou pelas mesmas transformações por que passaram todas as formas da empresa capitalista, desde a Revolução Industrial até as mais recentes configurações do neoliberalismo, expresso sobretudo pelo capitalismo de mercado globalizado.

As empresas têm como objetivo e razão o lucro. E nada mais, apesar dos seus belos discursos. Antigamente havia, sim, empresas criadas para beneficiar a coletividade. O próprio conceito de empresa pública era isto. Hoje, as empresas são criadas e mantidas como operações de esperteza, que ocupam (como antigamente os generais, usando seus guerreiros, ocupavam os territórios do inimigo) os mercados.

Não existem mais jornais cuja finalidade seja realmente informar ou contribuir para o desenvolvimento da sociedade etc. Os jornais são empresas que querem vender.

O "publijornalismo" vende mais do que o jornalismo cultural efetivo (e não tem o perigo de dar voz àqueles ou aquelas que possam vir a ameaçar, mais cedo ou mais tarde, as oportunas e lucrativas relações com o poder).

5 - O Jornalismo Cultural deveria funcionar como uma crítica intelectual ou como um serviço de utilidade pública?

Creio que ambas as funções devem estar englobadas dentro do jornalismo cultural. Um jornal, por exemplo, deve tanto listar os filmes, espetáculo e eventos da cidade, quanto abrir espaço para que críticos, artistas, cientistas, organizadores e o próprio público se manifestem acerca dos acontecimentos. Por aí, penso.

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